domingo, 14 de abril de 2013

A claraboia e o holofote #1





Carta a Murilo Medici Navarro da Cruz


Murilo,

Admiro muito o preceito de interpretação contido na oitava tese contra Feuerbach:

Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios, que induzem às doutrinas do misticismo, encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis.

A série de ensaios que escrevi sobre as “figuras do negativo” foi uma tentativa de aplicar esse preceito de Marx. Eu queria mostrar que em certas obras da literatura “fantástica” (estou empregando a palavra num sentido bem mais amplo do que o usual),  o confronto com entidades supostamente ameaçadoras – o Horla, Cthulhu e Bartleby - permite que se manifeste plenamente a negatividade dos narradores na forma de medo, horror e impotência. Essa negatividade não é o resultado da condição de isolamento ou alienação dos narradores. Não é “a solidão do sujeito contemporâneo” que produz monstros, mas a teia de relações sociais que dão forma às práticas cotidianas. Cada um dos narradores está preso às relações do mundo burguês ou pequeno burguês: o herdeiro ocioso que teme ser submetido à dominação de um invasor clandestino (Le Horla); o acadêmico pequeno-burguês moralista e provinciano que se apavora diante do retorno de uma criatura que vai congregar em torno de si os negros e os mestiços (The Call of Cthulhu); o advogado pusilânime, acostumado às práticas acomodatícias de Wall-Street, que se confronta com a inesperada resistência passiva de um empregado do qual é difícil se livrar (Bartleby, the Scrivener).

Nem seria preciso dizer que quem me colocou nessa pista foi Roberto Schwarz, num antigo ensaio sobre um conto de Kafka. Em “Tribulações de um Pai de Família”, o pai-narrador descreve o Odradek, um objeto-vivo que habita sua casa sem lhe causar mal algum, mas embora inofensiva, essa presença  suscita nele uma angústia quase dolorosa. Para Schwarz, o que inquieta o narrador é que Odradek é uma coisa emancipada do reino da utilidade e da troca e, por isso, fornece uma imagem invertida do mundo reificado em que o pai burguês se encontra.

A literatura tem, entre outras possibilidades, a de condensar e plasmar, na forma de personagens avessos a qualquer explicação, os medos e angústias de um grupo social e de uma época. A  opacidade do monstro é sintoma de algo que o próprio narrador – e às vezes, o próprio autor – não pode compreender justamente porque a incompreensão é a condição de existência do narrador ou do autor. Aquilo que ele é, o seu modo de vida, depende de um sistema de acordos tácitos e de silêncios incompreendidos.  Quando se elucida esse sistema que constitui a teia das relações sociais, a angústia em relação aos monstros é devolvida ao mundo social prático de onde veio, conforme o preceito da oitava tese de Marx.

Agora minha intenção é ler o Manifesto do Partido Comunista, de 1848, segundo o preceito que Marx enunciara em 1845.  A pergunta que faço é: o Manifesto foi capaz de dar conta das relações sociais sem deixar resíduos destinados a ganhar a forma de monstros? Ou será possível identificar no Manifesto traços de um enredo “fantástico” na forma de forças opacas que resistem à razão?

Minha leitura é a de um filósofo que também se dedica ao estudo e ensino da literatura. No texto de Marx, eu vejo palavras, personagens, figuras de linguagem. Também vejo argumentos e expressões que se pretendem conceitos. Você, como geógrafo, vai sentir que faltam certas observações fundamentais; eu, que estou acostumado com as minhas insuficiências, espero que elas sejam remediadas pela intervenção oportuna dos amigos que estudam o assunto.

- Por que você escolheu o Manifesto do Partido Comunista?

- Primeiro, porque é convenientemente curto. Segundo, porque é um belo exemplo de prosa doutrinal e polêmica. E sobretudo porque raramente o Manifesto é  lido de maneira atenta, justamente pelo fato de que basta citá-lo. Tudo o que é facilmente reconhecido nunca é devidamente conhecido. A culpa não é apenas da legião de estudantes universitários e pré-universitários que compram as edições populares do Manifesto e acham que são de esquerda porque sabem construir uma frase com as palavras “comunismo” e “Marx” (embora quase sempre sem o uso de conjunções...) Para ser justo com os estudantes e os sindicalistas de pouca instrução, é preciso lembrar que a forma mesma de “manifesto” demanda um tipo de leitura ideológica em que a urgência simplifica os argumentos em slogans e a ponderação de cada palavra declina perante as injunções do alinhamento político. Não se trata, portanto,  de uma obra “científica” ao gosto dos eruditos que se dedicam à exegese dos Grundrisse,  mas de um exercício de persuasão retórica voltado para a ação política de curtíssimo prazo. Como eu sou homem de tarefas de curtíssimo prazo, esse aspecto do Manifesto não é o menor dos seus atrativos para mim.

Ao longo das próximas postagens,  vou comentar o preâmbulo e as duas primeiras seções do Manifesto:  “Burgueses e Proletários” e “Proletários e Comunistas”. Na terceira seção, sobre a “Literatura socialista e comunista”, a pertinência da crítica de Marx somente pode ser devidamente avaliada depois de uma leitura atenta dos numerosos autores socialistas e comunistas aos quais  Marx faz alusão. Nem em sonhos eu me arriscaria a dar palpite sobre o assunto, por isso não pretendo discutir essa seção do Manifesto. Deixo de lado também a seção final, em que Marx fala de maneira rápida e superficial a propósito da “Posição dos comunistas diante dos diversos partidos de oposição”. Trata-se de uma análise conjuntural e tática que interessa mais aos historiadores do movimento de 1848 e aos críticos de Marx que se comprazem nas passagens em que ele foi duramente desmentido pelos eventos posteriores (“a revolução burguesa alemã só poderá ser, portanto, o prelúdio imediato de uma revolução proletária”).

Antes de começar, aviso que li o Manifesto em português, inglês e francês. Meu conhecimento atual do alemão é tão incipiente que posso apenas cotejar as traduções com o original da maneira mais elementar, porém isso se revelou bastante esclarecedor em várias passagens.



Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


O preâmbulo

1. Um espectro

Marx nunca se privou das metáforas vindas do domínio da magia e do sobrenatural. Vampiros, feitiços, metamorfoses e encantamentos povoam seus textos. Por isso, há apenas uma aparência de paradoxo no fato de que um dos textos fundamentais do materialismo histórico comece com a evocação de um espectro.


Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar, Metternich e Guizot, os radicais da França e os policiais da Alemanha.
Que partido de oposição não foi acusado de comunista por seus adversários no poder? Que partido de oposição, por sua vez, não lançou a seus adversários de direita ou de esquerda a pecha infamante de comunista?
Duas conclusões decorrem desses fatos:
1ª. O comunismo já é reconhecido como força por todas as potências da Europa;
2ª. É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo.
Com este fim, reuniram-se, em Londres, comunistas de várias nacionalidades e redigiram o manifesto seguinte, que será publicado em inglês, francês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês.

(Manifesto Comunista, tradução de Álvaro Pina revista por Ivana Jinkings, Boitempo, São Paulo, 1998)


Quando se trata de interpretar a expressão “espectro do comunismo”, parece-me necessário afastar dois equívocos opostos. O primeiro é considerar que a palavra “espectro” seja apenas uma maneira hiperbólica de referir-se à ameaça real do comunismo. O outro é o de supor que o “espectro” seja apenas uma miragem criada pelo medo.

Um exemplo do primeiro equívoco pode ser encontrado numa obra do historiador britânico Archie Brown, que conta o avanço do comunismo no século XX e o colapso do sistema soviético. Brown está preocupado, sobretudo, em mostrar o desafio geopolítico formidável que a União Soviética e a China ofereceram aos Estados Unidos e à Europa Ocidental. Dessa perspectiva, Brown  julga que a declaração de que o espectro do comunismo rondava a Europa  “era um exagero quando foi feita, em meados do século XIX. Em meados do século XX, tornara-se quase uma mitigação”. (Archie Brown, Ascensão e Queda do Comunismo).  

Acredito que, ao invés de ser uma estimativa do grau de  ameaça real do comunismo em 1848,  o texto  de Marx é apenas indicação de um “sintoma”:  a “velha Europa” se inquietava diante de algo que lhe aparecia sob uma forma espectral. As potências europeias estavam assustadas com um fantasma, contra o qual se formara uma turma compósita e improvável de ghostbusters :  o papa Pio IX e o czar Nicolau I, Metternich e Guizot, os radicais de Ledru-Rollin e a policia alemã, reunidos numa paródia da Santa Aliança.  (Aqui a tradução de Samuel Moore carrega nas cores sobrenaturais: All the powers of old Europe have entered into a holy alliance to exorcise this spectre; o texto alemão, mais sóbrio, não contém rituais de exorcismo, diz que se tratava apenas de formar uma liga anti-fantasma: gegen dies Gespenst verbündet)

No entanto, esse fantasma não era uma mera ilusão, não era uma simples miragem gerada por sentimentos coletivos de insegurança ou paranoia ultraconservadora. O medo das potências da “velha Europa” não era infundado e não podia ser dissipado simplesmente pelos golpes da ironia esclarecida. O fantasma era aparência distorcida de uma força que era reconhecida, sem ser conhecida. Por isso, a primeira conclusão que Marx tira é que as potências da Europa já reconheciam o comunismo como potência.

No entanto, cabe perguntar: Por que a potência do comunismo aparecia sob a forma de espectro?

Em primeiro lugar, o próprio Engels assinala quão pouco conhecido era o comunismo às vésperas da publicação do Manifesto:

Em 1847, o socialismo significava um movimento burguês, e o comunismo, um movimento da classe trabalhadora. Ao menos no continente, o socialismo era muito bem conhecido, enquanto o comunismo era o oposto. E como, desde então, éramos decididamente da opinião de “a emancipação dos trabalhadores deve ser obra da própria classe trabalhadora”, não podíamos hesitar entre os dois nomes a escolher. Posteriormente, nunca pensamos em modificá-lo.
(Engels, Prefácio à edição inglesa de 1888)

Segundo, a repressão da década de 1840 obrigava a Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos) a atuar na clandestinidade:

A Liga dos Comunistas, associação internacional de operários que, nas condições de então, só poderia ser secreta, incumbiu os abaixo assinados, por ocasião do congresso realizado em Londres, em novembro de 1847, de escrever para fins de publicação um programa detalhado, teórico e prático, do partido. Essa foi a origem do Manifesto que se segue, cujo manuscrito foi enviado a Londres, para impressão, poucas semanas antes da revolução de fevereiro.
(Marx e Engels, Prefácio à edição alemã de 1872)

Terceiro, o “comunismo” não tinha unidade teórica.  A Liga dos Comunistas, para a qual foi escrito o Manifesto,  estava dividida entre as propostas de Marx e Engels, leitores da Hegel e de Ricardo, e  as de Wilhelm Weitling, leitor das teorias utópicas de Cabet e do cristianismo jacobino de Lammenais.

Quarto, a prática dos comunistas se limitava à agitação “carbonária” promovida por pequenos grupos de trabalhadores que, de tempos em tempos, eram obrigados a fugirem da perseguição policial para reagruparem-se em outros países, como acontecera com os artesãos alemães que fundaram a Liga dos Justos.

Essas condições de obscuridade certamente faziam com que o “comunismo” fosse associado às práticas nefastas e subversivas dos grupos conspiratórios que povoavam a literatura popular desde as últimas décadas do século XVIII.

Fantasias sobre sociedades secretas e complôs secretos agitavam o público de tal maneira que nós hoje em dia – sob a histeria do terrorismo e das teorias conspiratórias – podemos imaginar. Essa atmosfera favorece o surgimento de um gênero literário (...) É o gênero do romance sobre irmandades secretas; ele conta com horror bem dosado as façanhas das misteriosas irmandades. Nos anos de 1780 e 1790 são publicados mais de duzentos títulos correspondentes. (...)
O ponto de referência real de tais histórias é a atuação das irmandades secretas de jesuítas, dos maçons, dos iluminados e dos rosacruzes. As teorias da conspiração dentro das irmandades foram e são até hoje a mais efetiva forma de filosofia da história para as massas. (...)
(Rüdiger Safranski, Romantismo: uma questão alemã, capítulo III)

Safranski entende que o surgimento de uma concepção popular da história como manipulação conspiratória era resultado do advento da filosofia da história:

"De todo o emaranhado de coincidências aparentes”, lemos em Grosse, “desponta uma mão invisível que talvez paire sobre algum de nós, dominando-o no escuro; e o fio que ele pensa tecer em despreocupada liberdade, foi tecido por ela há muito tempo de antemão.” A mão invisível ou o fio secreto dominam a imaginação de uma época que acaba de começar a pensar a filosofia da história. “Se há um fio de desenvolvimento das forças humanas através dos séculos e das transformações na mão do destino, e se o olho humano pode percebê-lo – qual é ele?” Assim Herder formula a questão, cuja resposta considera tarefa do século. (...) As irmandades secretas e os respectivos romances dão uma aparência plausível ao fio da filosofia da história.
(op.cit., idem)

Uma época que havia aprendido a aceitar, com Adam Smith, que uma mão invisível harmonizava os mercados, uma época que lia vorazmente romances baratos sobre conspirações de irmandades misteriosas, uma época que julgava que a história era movida por forças ubíquas e secretas, uma época assim necessariamente veria o comunismo como espectro análogo a outros espectros, como o da conspiração judaica mundial, que viria a ser igualmente popular e ao qual o próprio comunismo ver-se-ia associado mais tarde.

Assim, se o comunismo aparecia como espectro não era simplesmente por ser uma ameaça real, ou por ser a ilusão gerada pelos temores coletivos. Havia, do ponto de vista histórico e social, condições objetivas que determinavam a aparência que o comunismo assumiu do ponto de vista subjetivo. Tratava-se, portanto, de uma aparência necessária.

Esse comunismo fantasmagórico, fonte de medo e de reações persecutórias explica porque o termo “comunista” se tornara um palavrão trocado entre os partidos políticos para difamar as posições adversárias, fossem de esquerda ou de direita.

Embora o espectro do comunismo fosse sintoma do reconhecimento do comunismo como potência, era preciso – segundo Marx e Engels - que esse caráter espectral do comunismo fosse superado pelos comunistas, que deveriam declarar abertamente quais eram seus projetos. Esta é a segunda conclusão do preâmbulo:

É tempo de os comunistas exporem, abertamente, ao mundo inteiro, seu modo de ver, seus objetivos e suas tendências, opondo um manifesto do próprio partido à lenda do espectro do comunismo.

Essa conclusão, na sua aparente obviedade e concisão, apresenta várias dificuldades interpretativas.

A premissa do preâmbulo é a de que as potências temem o espectro do comunismo. Essa premissa tem como corolário o fato de que o termo ”comunista” é usado de maneira infamante para acusar os opositores, quaisquer que sejam. Disso se segue a primeira conclusão:  a de que o comunismo já é reconhecido como potência, uma vez que seu espectro é temido. No entanto, a segunda conclusão parece decorrer de uma suposição que não está explicita no texto.

Se o comunismo, como espectro, já era reconhecido como potência que assustava os senhores da “velha Europa”,  o que os comunistas ganhariam vindo à luz e revelando quem eram? 

Por qual razão era necessário que isso acontecesse naquele momento (é tempo de os comunistas...)?

Por qual razão não seria suficiente um documento doutrinal interno ou uma exposição didática para esclarecimento dos militantes comunistas, como os Princípios do Comunismo, que Engels havia escrito pouco antes?  Por que não bastaria elaborar uma lista de teses sobre comunismo? Por que era preciso que houvesse justamente um “manifesto”?


Tentarei responder a essas perguntas no próximo capítulo desse folhetim filosófico.



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