terça-feira, 27 de agosto de 2013

Il moto non è diverso dalla stasi #6





RAVENA


Passagem e Fim

Ravena é um meio ou um ponto final: nada começa aqui.

O imperador Honório transferiu a corte para Ravena quando os visigodos de Alarico avançavam sobre Milão no ano 404 da era cristã. Durante setenta e dois anos, a cidade, elevada à capital do Império Romano do Ocidente, resistiu à incompetência dos imperadores e às investidas bárbaras até que uma coalizão variada de godos, liderada por Odoacro, destronou Rômulo Augústulo, o último imperador do Ocidente. 

O êxito de Odoacro, autoproclamado “Rei da Itália”, atraiu a atenção de Teodorico, chefe dos ostrogodos, que invadiu Ravena em 493. Odoacro foi assassinado, mas o reinado ostrogodo durou pouco. Em 540,  a cidade foi conquistada pelas tropas bizantinas do general Belisário, a serviço da política de Justiniano de reconquista do decaído império romano do Ocidente.  

A Ravena bizantina caiu nas mãos dos lombardos em 751, mas esse domínio também foi efêmero. Pepino, rei dos francos, por solicitação do papa, derrotou os lombardos e implantou a autoridade pontifical na região. Eis porque o filho de Pepino, Carlos Magno, que visitou Ravena mais de uma vez, teve o direito de espoliar os mármores e mosaicos da cidade para construir a Capela Palatina em Aachen.

O último esplendor de Ravena foi na época de Guido da Polenta, protetor de Dante e pai de Francesca de Rimini, a famosa protagonista do Canto V da Divina Comédia. A serviço de Guido, Dante Alighieri embarcou numa viagem diplomática rumo a Veneza. Na volta, contraiu a febre que o matou em 14 de setembro de 1321 na cidade de Ravena. 

E caddi come corpo morto cade.

interior da basílica de Santo Apolonio Novo   foto: Ludmila Ciuffi


Por que não vi o túmulo de Dante

As viagens, mesmo as bem sucedidas, são feitas de desencontros e desistências. No primeiro momento, saltamos às pressas do trem e corremos para ver a atração principal. É preciso cruzar ruas que, na rapidez da passagem, parecem-nos insípidas. Depois, fazemos fila, pagamos os tickets e seguimos o traçado imutável das visitações reverentes; uma hora mais tarde, atravessamos novamente as ruas e as pessoas e já estamos no item seguinte da lista longamente preparada. 

Há, no entanto, um momento em que o roteiro se desfaz e borram-se todas as linhas.  Avassalados pelos tempos mortos da travessia, renunciamos à viagem. Em segredo, passamos a odiá-la, ansiando o conforto do vagão de trem e o sono reparador. Temos pressa em transformá-la em memória para que ela se torne suportável.

O roteiro previsto precisa ser sacrificado; é imperioso que seja sacrificado. A negação é o último ato de vontade que nos resta. É essencial que algo seja deixado para trás, intocado pelas nossas fotos, ao menos como uma promessa de retorno.

Por isso, eu não vi o túmulo de Dante.

tribunas da igreja de San Vitale


Uma dama do século V

Em Ravena, Gala Placídia  está em toda parte. 

Filha do grande Teodósio, esposa relutante do visigodo Ataulfo e de Constâncio III, meia-irmã do fraco imperador Honório e mãe do incompetentíssimo Valentiano III, ela ao menos mostrou decência e bom gosto nas construções que mandou erigir em Ravena. Especialmente o famoso mausoléu, onde ela jamais foi enterrada.

O Mausoléu de Gala Placídia; ao fundo San Vitale (2013)

 
Interior do Mausoléu de Gala Placídia: detalhe dos mosaicos decorativos   foto: Ludmila Ciuffi

Klimt, As três idades da mulher (detalhe), Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma  foto: Ludmila Ciuffi


San Vitale

Os últimos governantes ostrogodos de Ravena começaram a construção de San Vitale na década de 20 do século VI. A construção é bem romana: sua massa e seu volume não tentam desafiar a lei da gravidade, mas conspiram com ela num pacto das forças. Quando os bizantinos conquistaram a cidade, a eficiente máquina de propaganda do imperador Justiniano concluiu a decoração da igreja, representando o Imperador e a basilissa Teodora num cortejo hierático em que se fundem o poder real e o dom sacramental, com a chancela do bispo da cidade, Maximiano, única figura nomeada.

Entretanto, no momento em que o imperador se ocupava com a política militar no Ocidente, no seu sonho de reerguer o Império Romano, as fronteiras orientais de Bizâncio eram ameaçadas pelos persas, pelos turcos e pelos eslavos. Nas décadas seguintes, a maior parte do legado de Justiniano no Oriente se apagou. De todas as suas infinitas imagens, restaram apenas os mosaicos de San Vitale de Ravena, onde Justiniano e Teodora jamais estiveram.

Teodora, San Vitale  foto: Ludmila Ciuffi

Abside de San Vitale   foto: Ludmila Ciuffi

interior de San Vitale


K/K

Embora não gostasse de viajar, Gustav Klimt esteve duas vezes em Ravena no ano de 1903. Apaixonou-se pelo ouro dos mosaicos de San Vitale e pelas figuras bidimensionais. A visita a Ravena foi um ponto de inflexão na obra de Klimt. Depois da áspera polêmica a respeito das pinturas na Universidade de Viena e do friso em homenagem a Beethoven no Pavilhão da Secessão, Klimt vivia uma crise, ao fim da qual ele abandonou a pintura alegórica e os últimos compromissos com uma representação verista.  Quando ele retornou a Viena, sua pintura incorporou os tons de ouro e a estilização geométrica dos elementos da natureza.

Klimt, As três idades da mulher (detalhe), Galeria Nacional de Arte Moderna, Roma  foto: Ludmila Ciuffi

Ao contrário de Klimt, Paul Klee era um viajante experiente. Desde o começo do século visitava regularmente a Itália, apesar dos problemas crônicos de dinheiro. Embora amasse Nápoles, é bem possível que nenhuma viagem tenha causado tanto impacto na sua arte quanto a visita à Tunísia em 1914.  Por isso, talvez seja errôneo atribuir demasiada importância à visita que Klee, sua esposa Lily e seu filho Felix fizeram a Ravena em setembro de 1926, embora seja possível ver em obras como Ad Parnassum os sinais da admiração pelos mosaicos. 

Não acredito, porém, que Klimt e Klee precisassem da visita a Ravena para chegar aos resultados pictóricos que alcançaram. Ravena, mais do que Veneza, é o retrato e a lembrança de uma longa decadência que escorre lentamente na escala dos séculos. Cidades assim servem como refúgio para uma civilidade acuada pelo ruído da barbárie. Por isso, parece-me que era um lugar onde Klimt poderia descansar de uma Viena intoxicada pelas contradições de um liberalismo em crise e pela ascensão de uma direita anti-semita liderada pelo prefeito Karl Lueger, que Hitler sempre admirou. Também me parece adequado que Paul Klee, já professor da Bauhaus, seguisse para Ravena quando Walter Gropius se via às voltas com os problemas financeiros da escola, ameaçada pela crise econômica e pelas crescentes forças da extrema direita que tomavam corpo na Alemanha. 


fachada do assim chamado Palácio de Teodorico


Por que não vi a tumba de Teodorico

Do restaurante, eu via um trecho da fachada do assim chamado Palácio de Teodorico. Mas, em Ravena, tudo se desloca e escapa por entre nossos dedos. A verdade é que Teodorico jamais viveu ali, perto de Santo Apolonio Novo, mas sim  junto ao Batistério dos Arianos. 

Não me lembro do que comi, mas sei que saí satisfeito e disposto a caminhar mais um bocado. Nesse momento tivemos que fazer nossa escolha: seguiríamos para o túmulo de Dante ou iríamos para o lado oposto da cidade, em direção à tumba de Teodorico, que fica além da ferrovia?

Concordamos em voltar para a estação de trem e, no caminho, conhecermos a igreja de São João Evangelista, terrivelmente danificada no bombardeio de 1944, quando a cidade foi libertada. Olhamos com carinho para os mosaicos naïfs que adornam as naves da basílica. As ruas perpendiculares à linha férrea tem nomes bonitos. Uma se chama via Beatrice Alighieri, em homenagem à filha de Dante, que se tornou freira em Ravena e, já idosa, recebeu dez florins de ouro das mãos de Boccaccio. A praça junto à igreja de São João tem o nome de Anita Garibaldi.

A heroína catarinense, que conheceu Garibaldi em Laguna, morreu numa fazenda perto de Ravena, junto com o filho recém-nascido, enquanto se escondia da perseguição das tropas austríacas no tumultuado ano de 1849 (Ravena sempre foi um meio ou um ponto final).

Anita não descansou tão cedo. O corpo foi levado para Nice e para Gênova. Finamente, quase noventa anos depois, ela foi enterrada com honras no Janículo, colina romana dos heróis e dos arúspices, na presença de Benito Mussolini.
 
Na praça Anita Garibaldi, um grupo de idosos passou o dia de sol conversando animadamente. Pelo menos três deles se pareciam com meu pai, com meu avô e com meu bisavô Battista.

(Eis-me de volta à infância. Então é isso? Viajamos para encontrar nossos fantasmas? Parece que o percurso da viagem nunca é maior do que o perímetro de nossas obsessões.)

Pegamos o trem regional para Bolonha e o Freccia para Florença.




Michael Angold, Bizâncio, Imago| Xavier Barral i Altet, A Alta Idade Média, Taschen| Giuseppe Bovini, Ravenne: Art et Histoire, Editions Longo| Diana Bowder, Quem foi quem na Roma Antiga, Círculo do Livro| Peter Brown, The World of late Antiquity, W.W. Norton| Susanna Partsch, Klee, Taschen| Barbara Reynolds, Dante: o poeta, o pensador político e o homem, Record| Steven Runciman, A Civilização Bizantina, Zahar Editor| Carl Schorske, Viena fin-de-siècle, Companhia das Letras| Ronaldo Vainfas, Dicionário do Brasil Imperial, Objetiva


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