segunda-feira, 14 de abril de 2014

A claraboia e o holofote # 23 (Adendo ilustrativo)





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista



A social-democracia alemã (parte 2)



Marx e Engels contra a social-democracia alemã


uma antologia breve


1.


"São exatamente os mesmos que, por medo da ação, frearam o movimento a cada passo em 1848 e 1849, e afinal o levaram ao fracasso". 

Karl Marx, Circular aos dirigentes social-democratas alemães (1879)

O intelectual social-democrata Karl Höchberg havia lançado em Zurique, com a ajuda de Carl August Schramm e Eduard Bernstein, uma revista revisionista chamada Anais de Ciências Sociais e Política Social, que defendia o abandono da estratégia revolucionária e do caráter operário do partido social-democrata. 


Marx e Engels atacaram esse aburguesamento, que viria a dominar o partido. Numa carta enérgica enviada a Liebknecht, Babel e Bracker, o dirigismo pequeno-burguês assumido por alguns intelectuais social-democratas, assim como sua política de contemporização e sua estratégia de adiamento da ação revolucionária ad calendas graecas são confrontados com a experiência de 1848-1849, que Marx e Engels ainda consideravam fundamental. 


"Em resumo, a classe operária é incapaz de se emancipar por seus próprios meios. Deve se colocar sob a direção de burgueses “instruídos e possuintes” que, só eles, “dispõem de meios e tempo” para se familiarizar com o que é bom para os operários. (...)

No dia em que Berlim for de novo bastante inculta para se lançar num novo 18 de março de 1848, os sociais-democratas, em vez de participar da luta da “canalha atraída pela embriaguez das barricadas”, vão de preferência “seguir a via da legalidade”, bancar os moderados, desmontar as barricadas e, se necessário, marchar com os nobres senhores da guerra contra as massas tão unilaterais, rudes e incultas. Ou se esses senhores disserem que não foi isso que quiseram dizer, então o que foi que quiseram dizer? (...)

“O programa não deve ser abandonado, mas simplesmente adiado – por tempo indeterminado.” Aceitam-no, mas não propriamente para eles mesmos ou para a época contemporânea, mas a título póstumo, como herança para seus filhos e netos. Enquanto isso, empregam “toda a sua força e toda a sua energia” em tudo quanto é espécie de arranjo e remendo da sociedade capitalista, para fazer crer que alguma coisa está sendo feita, e também para que a burguesia não se assuste. (...)

São exatamente os mesmos que, por medo da ação, frearam o movimento a cada passo em 1848 e 1849, e afinal o levaram ao fracasso; as mesmas pessoas que nunca veem a reação em ação e sempre se espantam de cair num impasse, em que qualquer resistência e qualquer fuga são impossíveis; as mesmas pessoas que querem encerrar a história em seus estreito e mesquinho horizonte pequeno-burguês, enquanto ela passa à ordem do dia por cima da cabeça delas. (...)

No que diz nos diz respeito, todo o nosso passado faz uma única via permanecer aberta para nós. Há quase quarenta anos apresentamos a luta de classes como o motor mais decisivo da história e, mais particularmente, a luta social entre burguesia e proletariado como a alavanca mais poderosa da revolução social moderna. Portanto, não podemos de modo algum nos associar a pessoas que querem riscar do movimento essa luta de classe.

Ao fundar a Internacional, proclamamos expressamente que a divisa de nosso combate era: “A emancipação da classe operária será obra da própria classe operária.” Portanto, não podemos marchar com pessoas que expressam abertamente que os operários são incultos demais para se emancipar e, por isso, devem ser libertados primeiro do alto, pelos filantropos grande e pequeno-burgueses. Se o novo órgão do Partido adotar uma posição burguesa e não proletária, para nosso desgosto não nos restaria saída a não ser declarar publicamente nossa oposição e romper a solidariedade com que representamos o partido alemão no estrangeiro".
(in Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, p. 92-93)



2.

"Enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal."


Friedrich Engels, Carta a Bebel (março de 1875)

Engels comenta com August Bebel os pontos que ele considerava condenáveis no Programa de Gotha, especialmente os equívocos a respeito do papel do Estado e das noções de "liberdade" e "igualdade".

Nenhuma palavra é dita sobre a organização da classe trabalhadora como classe por meio dos sindicatos. E esse é um ponto absolutamente essencial, pois se trata propriamente da organização de classe do proletariado no seio da qual ele luta suas batalhas diárias contra o capital, na qual ele se instrui e que hoje não pode mais ser esmagada, nem mesmo pela mais terrível reação (como é o caso atualmente em Paris).  

O Estado popular livre transformou-se no Estado livre. Em seu sentido gramatical, um Estado livre é aquele Estado que é livre em relação a seus concidadãos, portanto, um Estado com governo despótico. Dever-se-ia ter deixado de lado todo esse palavreado sobre o Estado, sobretudo depois da Comuna, que já não era um Estado em sentido próprio. O Estado popular foi sobejamente jogado em nossa cara pelos anarquistas, embora já o escrito de Marx contra Proudhon e, mais tarde, o Manifesto Comunistas digam de maneira explícita que, com a instauração da ordem socialista da sociedade, o Estado dissolve-se por si só e desaparece.  Não sendo o Estado mais do que uma instituição provisória, da qual alguém se serve na luta, na revolução, para submeter violentamente seus adversários, então é puro absurdo falar de um Estado popular livre: enquanto o proletariado ainda faz uso do Estado, ele o usa não no interesse da liberdade, mas para submeter seus adversários e, a partir do momento em que se pode falar em liberdade, o Estado deixa de existir como tal. Por isso, nossa proposta seria substituir, por toda parte, a palavra Estado por Gemeinwwesen, uma boa e velha palavra alemã, que pode muito bem servir como equivalente do francês commune. (...)

A representação da sociedade socialista como reino da igualdade é uma representação unilateral francesa, baseada na velha “liberdade, igualdade, fraternidade”, uma representação que teve sua razão de ser como fase do desenvolvimento histórico, em seu tempo e em seu lugar, mas que agora, como todas as unilateralidades das primeiras escolas socialistas, deveria ser superada, uma vez que serve apenas para provocar confusão nos cérebros e porque, além disso, descobriram-se formas mais precisas de tratar a questão". (Crítica ao Programa de Gotha, pp. 55-57)



3.

"Um grande número de frases sobre o dever ser do comunismo, em sua maioria apoiadas no Manifesto, porém tão distorcidas em sua redação que, quando vistas de perto, revelam as mais revoltantes asneiras."

Friedrich Engels, Carta a Wilhelm Bracke (outubro de 1875)

Engels endossa as críticas que Marx fez ao programa de Gotha.


“O programa, em sua redação final, consiste de três partes:

1. Fraseologias lassallianas e termos que não poderiam ter sido adotados sob nenhuma condição. Se duas frases se unem, não se põe no programa de união aquilo que é controverso. Ao permitir que isso ocorresse, nossos homens se submeteram espontaneamente ao mais degradante jugo.

2. Uma série de reivindicações vulgar-democráticas, concebidas no espírito e no estilo do Partido Popular.

3. Um grande número de frases sobre o dever ser do comunismo, em sua maioria apoiadas no Manifesto, porém tão distorcidas em sua redação que, quando vistas de perto, revelam as mais revoltantes asneiras. Quando não se entende dessas coisas, deve-se desistir de escrever sobre elas ou copiar literalmente daqueles que entendem delas. (Crítica ao Programa de Gotha, p. 61)



4.

"[Lassalle] fazia negociatas tais com Bismarck, seu parente de caráter, que acabariam de fato por conduzir à traição do movimento, se ele não tivesse sido baleado a tempo, para sua própria sorte.” 

Friedrich Engels, Carta a Kautsky (fevereiro de 1891)

Os social-democratas transformaram Lassalle numa lenda, que Engels achava necessário desfazer. Porém a lenda continuaria viva mesmo após a 2ª Guerra Mundial. Possivelmente um sinal de que não se tratava de um equívoco, mas de um aspecto fundamental da visão social-democracia alemã: sua crença nos poderes do Estado. 

“A lenda que esconde a diviniza a verdadeira figura de Lassalle não pode se tornar artigo de fé do partido. Mesmo que se admitam seus méritos em relação ao movimento operário, seu papel histórico permanece, nele, um papel ambíguo (...) Depois de ter sido na prática, até 1862, um democrata vulgar tipicamente prussiano, com fortes inclinações bonapartistas (li agora mesmo a carta dele a Marx), ele mudou de repente, por motivos puramente pessoais, e começou sua militância; em menos de dois anos, já exigia que os trabalhadores usassem o partido da realeza contra a burguesia e fazia negociatas tais com Bismarck, seu parente de caráter, que acabariam de fato por conduzir à traição do movimento, se ele não tivesse sido baleado a tempo, para sua própria sorte.” (Crítica ao Programa de Gotha, p. 68-69)



5.

"A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio, quando estou decidido a falar."

Friedrich Engels, Carta a Bebel (maio de 1891)

Engels explica a Bebel o papel que Wilhelm Liebknecht teve na elaboração do programa de Gotha e critica a atitude do partido em tentar censurar a publicação do documento. Os social-democratas alemães do final do século XIX já colocavam em prática aquela dura disciplina interna, em nome de obscuras decisões de gabinete, que irá caracterizar o cotidiano dos partidos comunistas do século XX. 


“Quer saber de onde as obscuras e confusas fraseologias do programa? Ora, são todas de Liebknecht em carne e osso; foi em torno delas que brigamos com ele ao longo dos anos e era diante delas que ele se entusiasmava. (...) E como fazia questão das reivindicações democráticas, que ele acreditava compreender, tanto quanto das teses econômicas, que ele não compreendia com clareza, ele certamente agiu com sinceridade quando, ao trocar suas quinquilharias democráticas pelos dogmas lassallianos, achou que estava fazendo um excelente negócio. 
(...)
Mais uma coisa: depois que vocês tentaram coercitivamente impedir a publicação do artigo, e enviaram ao Neue Zeit advertências de que, em caso de reincidência, ele poderia ser estatizado pelo partido e censurado, obriga-me a por sob uma luz adequada a apropriação de toda a sua imprensa pelo partido. Em que vocês se diferenciam de Puttkamer, se introduzem em suas próprias fileiras uma “lei contra os socialistas”? A mim, pessoalmente, isso só pode ser de uma forma: nenhum partido, em nenhum país, pode me condenar ao silêncio, quando estou decidido a falar. Mas eu gostaria de sugerir a vocês que refletissem se não fariam melhor sendo um pouco menos melindrosos e, na ação, menos prussianos. Vocês – o partido – precisam da ciência socialista, e esta não pode viver sem liberdade de movimento. Para isso, é preciso tolerar as inconveniências, e isso se faz mantendo a compostura sem vacilar. Uma tensão, mesmo que leve, para não falar de uma ruptura entre o partido alemão e a ciência socialista alemã, seria uma desgraça e uma vergonha inomináveis. (...) E, ainda, vocês não podem esquecer que a disciplina num grande partido não pode ser imposta sob ameaça de punição, como se faz numa pequena seita, e que não existe mais a “lei contra os socialistas”, aquela que fundiu lassallianos e eisenachianos e tornava necessária tal coerência de opiniões.” (Crítica ao Programa de Gotha, (p. 73-74; 75-76)


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Michel Renault, Gérard Duménil, Michael Löwy, Ler Marx, Editora Unesp, 2011  |  Karl Marx, Crítica ao Programa de Gotha, Boitempo, 2012 


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Foto: tela de Giuseppe Penone, acervo da Galleria Nazionale d'Arte Moderna, Roma




EDIÇÃO COMEMORATIVA DUPLA

a claraboia e o holofote 


14 de abril de 2013 - 14 de abril de 2014



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