segunda-feira, 12 de maio de 2014

A claraboia e o holofote 25





Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista


A social-democracia alemã (parte 4)


Engels // Bernstein




As revoluções de 1848, ao mobilizarem a burguesia e o proletariado, ofereceram ocasião para uma grande transformação, precisamente no momento em que Marx e Engels acreditavam ter descoberto a chave para o entendimento da dinâmica social e histórica: a radicalização da luta de classes seria expressão de agudas contradições nas relações de produção, por isso as crises econômicas seriam sucedidas por períodos de tensão social e política. 

Contudo, se dispunha da ciência da História e da ocasião propícia, por que o partido comunista de 48 fracassou? Por que suas grandes esperanças foram varridas pela repressão e pela vitória dos conservadores reunidos em torno de Napoleão III e de Bismarck?

Ao escrever a introdução para As Lutas de Classes na França, quase cinquenta anos depois da "Primavera dos Povos", Engels examinou o fracasso do processo revolucionário de 48 e de 71 à luz dos avanços políticos do SPD (Partido Social-Democrata Alemão). Esse texto célebre, conhecido como o Testamento de Engels, foi tido muitas vezes como a capitulação do velho revolucionário cansado de guerra à via parlamentar e reformista. Que pouco tempo depois alguém tão próximo a Engels quanto Eduard Bernstein viesse a defender abertamente o abandono da prática revolucionária e da meta de uma sociedade sem classes parecia sugerir que alguma mudança profunda ocorrera no final da vida do parceiro de Marx.

Poder-se-ia imputar a Engels a responsabilidade pelo revisionismo?  Isso seria ignorar que, muitos anos antes, o aburguesamento do Partido Social-Democrata já era motivo de preocupação para Marx e Engels, como demonstra a circular aos dirigentes do partido em 1879 (A claraboia e o holofote # 23 adendo); ademais, embora o programa de Erfurt (1891) tivesse sido uma vitória da corrente marxista, os objetivos revolucionários – sempre reafirmados pela ortodoxia do partido – eram adiados para um futuro confortavelmente distante, enquanto a prática parlamentar-reformista do SPD estava na ordem do dia.  Apesar disso, não seria de todo descabido pensar que a interpretação dada por Engels ao legado de Marx abria caminho, ainda que por vias tortas, ao revisionismo de Bernstein. É o que pretendo mostrar neste capítulo.






1. A urdidura

"A clara visão de conjunto sobre a história econômica de uma dado período nunca lhe é simultânea, só posteriormente se conquista, após realizados a recolha e o exame do material"



Depois da morte de Marx, Engels passou a insistir cada vez mais que o falecido amigo havia descoberto um conjunto de leis do movimento histórico equivalente às descobertas de Darwin no campo da biologia. Tratava-se uma ciência socialista da História – o materialismo histórico - fundamental para os partidos operários (A claraboia e o holofote #22). O ponto de partida do Testamento de Engels é justamente a defesa dessa ciência. Engels queria preservar seu núcleo de verdade, mostrando que as análises de Marx eram fundamentalmente corretas, embora estivessem inevitavelmente sujeitas a erros de estimativa decorrentes de informações incompletas.

“Na apreciação de acontecimentos e de séries de acontecimentos da história do dia-a-dia nunca estaremos em condições de recuar até às últimas causas econômicas. Mesmo ainda hoje, quando a respectiva imprensa especializada fornece material tão abundante, seria impossível, até na Inglaterra, seguir o curso da indústria e do comércio no mercado mundial e as mudanças que dia após dia são introduzidas nos métodos de produção, de modo a que, em qualquer momento, se possa fazer o balanço geral destes fatores multiplamente imbricados e em permanente mudança, fatores dos quais os mais importantes atuam na maioria dos casos durante muito tempo às ocultas antes de, repentinamente, se fazerem valer com violência à superfície. A clara visão de conjunto sobre a história econômica de um dado período nunca lhe é simultânea, só posteriormente se conquista, após realizados a recolha e o exame do material. A estatística é aqui um meio auxiliar necessário, e segue sempre atrás coxeando.”
(Engels, Introdução a Lutas de Classes em França de 1848 a 1850

Em 1848 faltavam dados suficientes para verificar o estágio real de desenvolvimento das forças capitalistas. Assim, se era verdade que as revoluções de 48 se seguiram à crise econômica de 1847, não era verdade que aquela fosse a crise final do sistema, ou de que o colapso estivesse logo ali na esquina. 

“A nós e a todos quantos pensávamos de modo semelhante a história não deu razão. Mostrou claramente que nessa altura o nível do desenvolvimento econômico de modo algum estava amadurecido para a eliminação da produção capitalista.”

Engels queria estabelecer firmemente o legado científico de Marx, ainda que ao preço de colocar em questão a eficácia do papel que tiveram como revolucionários. Ele sabia que o êxito de uma revolução não dependia apenas da disposição combativa do proletariado. Era preciso levar em conta o nível de desenvolvimento econômico e a correlação de forças políticas. Mesmo na última década do século XIX, quando o proletariado constituía um poderoso exército, tendo à frente um movimento socialista bastante organizado, o capitalismo alemão estava mais forte do que nunca e qualquer tentativa de derrubá-lo seria desastrosa.

“O fato de que mesmo este poderoso exército do proletariado não tenha ainda alcançado o objetivo, esteja ainda longe de alcançar a vitória com um único e grande golpe, se veja obrigado a progredir lentamente de posição para posição, numa luta dura e tenaz, demonstra de uma vez para sempre como em 1848 era impossível conseguir-se a transformação social por meio de um simples ataque de surpresa."

Isso significa dizer que a revolução desaparecera como caminho para a conquista do poder pelo proletariado?  

Não exatamente. O que estava esgotado era o modelo de luta de barricadas praticado em 1848. Mesmo na época, seu efeito era mais moral do que militar e dependia da adesão dos soldados que se recusavam a atirar nos seus concidadãos. Com as mudanças na organização das tropas regulares, com o novo armamento (especialmente o fuzil de repetição) e com a abertura de grandes avenidas nos centros urbanos, à maneira da Paris de Haussmann, a luta de barricadas se tornara impraticável. O acerto de Engels pôde ser tristemente verificado no massacre que se seguiu às barricadas de Milão em 1898 (Il moto non è diverso dalla stasi #2). Era preciso evitar carnificinas desse tipo. Sacrifícios como os de junho de 48 ou da Semana Sangrenta de 71 retardavam por muito tempo o progresso do movimento operário. No caso alemão, era especialmente importante não enfraquecer o proletariado com derramamento de sangue; ao invés dos riscos de uma revolução, melhor seria aproveitar os resultados eleitorais para preparar a etapa seguinte do movimento operário. 

Mesmo com todos os elogios ao uso inteligente do sufrágio universal (que, como Engels lembra, era um proposta do Manifesto retomada por Lassalle), o recurso à violência revolucionária não desapareceu do horizonte de Engels; ele reconhecia que o modelo revolucionário ainda tinha lugar em outros países. 

“É evidente que os nossos camaradas estrangeiros não renunciam ao seu direito à revolução. O direito à revolução é sem dúvida o único "direito" realmente "histórico", o único em que assentam todos os Estados modernos sem exceção.

A questão não era simplesmente escolher entre pegar em armas ou ir para as urnas.  Engels queria mostrar que a derrota da Comuna de Paris e a ascensão do movimento operário na Alemanha apoiado por uma representação legal no parlamento haviam alterado as condições para o sucesso do movimento proletário.

Primeiro, tratava-se de preparar as condições de uma revolução que seria, pela primeira vez na história, um movimento feito em interesse de uma maioria e não de uma minoria, como tinham sido as revoluções até agora:

"Sempre que se trata de uma transformação completa da organização social são as próprias massas que devem estar metidas nela, têm de ter compreendido já o que está em causa, por que é que dão o sangue e a vida. Isto foi o que a história dos últimos cinquenta anos nos ensinou. Mas para que as massas entendam o que há a fazer é necessário um longo e perseverante trabalho; e esse trabalho é precisamente o que agora estamos realizando e com um êxito que leva os nossos adversários ao desespero."

Segundo, era preciso pensar como seriam as futuras lutas de rua:

“Isto quer dizer que no futuro a luta de ruas deixará de ter importância? De modo nenhum. Significa apenas que desde 1848 as condições se tornaram muito mais desfavoráveis para os combatentes civis, muito mais favoráveis para a tropa. Por conseguinte, uma futura luta de rua só poderá triunfar se esta situação desvantajosa for compensada por outros fatores.”

Terceiro, era preciso resolver o difícil problema de identificar o momento de convocar as massas para uma revolução. Como saber quando as condições estão maduras? 

“Se o sufrágio universal não tivesse oferecido qualquer outro ganho além de nos permitir, de três em três anos, contar quantos somos; de, pelo aumento do número de votos inesperadamente rápido e regularmente constatado, aumentar em igual medida a certeza da vitória dos operários e o pavor dos seus adversários, tornando-se assim o nosso melhor meio de propaganda; a de nos informar com precisão sobre as nossas próprias forças assim como sobre as de todos os partidos adversários e, desse modo, nos fornecer uma medida sem paralelo para as proporções da nossa ação e nos podermos precaver contra a timidez e a temeridade inoportunas; se fosse esta a única vantagem do sufrágio universal isso já era mais que suficiente.” 

Por último, era preciso deixar aberta a possibilidade de recurso à violência defensiva caso o proletariado alemão fosse desafiado por um rompimento da legalidade por parte do governo:

"Só poderão conter a subversão social-democrática, que no momento se dá tão bem respeitando a lei, mediante a subversão dos partidos da ordem, os quais não podem viver sem violar as leis (....) ensinaram-lhes o único caminho pelo qual talvez possam pegar pelo gasganete os operários, que simplesmente se recusam a deixar-se arrastar aos combates de rua. Violação da Constituição, ditadura, volta ao absolutismo (...) Não se esqueçam, porém, de que o Império Alemão, como todos os pequenos Estados e, em geral, todos os Estados modernos, é produto de um pacto; primeiramente, de um pacto de príncipes entre si e, depois, dos príncipes com o povo. Se uma das partes quebra o pacto, todo ele é nulo e a outra parte está desobrigada. Bismarck demonstrou isso brilhantemente em 1866. Portanto, se vocês violarem a Constituição do Reich, a social-democracia ficará livre para fazer o que lhe parecer melhor a seu respeito. Mas o que fará então não há de lhes dizer hoje."



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O que o Engels dos últimos dias sabia muito bem é que o tempo da ciência (o conhecimento dos fatores econômicos e sociais), o tempo do processo histórico (o momento oportuno para agir) e o tempo da avaliação política (o que fazer) jamais coincidiam. A rapidez das revoluções evidenciava da maneira mais aguda esse descompasso, razão pela qual eram tão arriscadas, ao passo que a lentidão do processo parlamentar, com o uso sábio do sufrágio universal, tinha vantagens tanto a curto quanto a longo prazo. As eleições propiciavam um contato direto com as massas durante as campanhas eleitorais e o resultado das urnas  servia como medidor objetivo do crescimento da força política do proletariado e permitia determinar o momento oportuno para a ação. Se é verdade que o termômetro eleitoral punha fim às "temeridades inoportunas" do blanquismo, nem por isso as revoluções haviam se tornado obsoletas. Mais cedo ou mais tarde, as classes dominantes iriam se opor ao avanço do proletariado, o que levaria ao confronto revolucionário. A tomada de poder pelos trabalhadores e a instauração de uma sociedade sem classes e sem Estado  ainda eram os objetivos finais, mas o processo parecia agora muito mais lento e complexo.

Engels não perdeu de vista que, por trás das vitórias eleitorais do partido, era o avanço do proletariado que contava. Não cabia ao partido conquistar o poder, mas sim impulsionar o movimento até que o operariado estivesse em condições fazê-lo. Nisto, como em outras coisas, Engels permanecia fiel à concepção do partido comunista na seção II do Manifesto (A claraboia e o holofote # 14 ). 
No seu escrito derradeiro, ele tinha certeza de que o holofote da "ciência socialista" ajudaria a vislumbrar o futuro do desenvolvimento histórico, ao passo que o momento oportuno para a revolução seria anunciado pelos resultados eleitorais, que lançariam uma luz de claraboia sobre a conjuntura das forças.



2.   A trama


"O que geralmente é chamado o objetivo último do socialismo não é nada para mim; o movimento é tudo." 




O executor testamentário de Engels era o tipo de homem do SPD, ao qual se devotou como militante desde jovem e ao qual esteve ligado até o final da sua vida (com exceção de um curto período na dissidência). Nascido em 1850, e tendo crescido numa família judia progresssista e instruída de Berlim, Eduard Bernstein era herdeiro dos ideais liberais de unificação nacional e de democracia. A partir de 1872 se aproximou dos eisenachianos liderados por Liebknecht e Bebel e participou do congresso de Gotha, que decidiu a unificação dos partidos operários. 

Bernstein nunca foi um radical, por isso se sentiu atraído pelo "socialismo ético" de Karl Höchberg e participou da revista Anais de Ciências Sociais e Política Social, que defendia o abandono da estratégia revolucionária e do caráter operário do partido social-democrata, o que causou a fúria de Marx e Engels (A claraboia e o holofote 23 adendo ilustrativo). Por isso, Bernstein teve que ser conduzido por August Bebel a Londres, numa visita expiatória para obter o perdão daqueles dois terríveis senhores. A confiança foi reestabelecida a ponto de Marx consentir que ele se tornasse o editor do periódico Der Sozialdemokat em Zurique. Todavia, não demorou que Bernstein tivesse de sair da Suiça por pressão do governo de Bismarck. Exilado em Londres a partir de 1888, ele se tornou próximo de Engels, de um lado, e dos socialistas fabianos, de outro. 


Em 1891, participou, junto com Kautsky, da redação do programa de Erfurt, que colocava o Partido Social-Democrata Alemão no campo marxista, banindo o legado de Lassalle. Nos seus últimos ano, Engels tinha grande estima por "Ede" e tentava sorrir de seu ecletismo e de seus flertes com as correntes reformistas. Encarregado de cumprir as disposições finais do velho revolucionário, Eduard Bernstein lançou suas cinzas ao mar, ao largo de Beachy Head, na costa de Eastbourne num dia frio do outono de 1895. 


Logo depois da morte de Engels, Bernstein passou a afirmar publicamente que a velha doutrina de base do SPD estava em desacordo com a sua bem-sucedida prática legalista, parlamentarista e reformista. Uma vez que as perseguições da era de Bismarck haviam terminado; que o capitalismo estava em pleno desenvolvimento na Alemanha; que os operários eram beneficiados por intervenções bem sucedidas dos sindicatos e por uma representação crescente no parlamento, a  linha revolucionária herdada dos combates de 48 parecia ter sido superada, como o próprio Engels havia confessado no seu Testamento. Bernstein achava que havia chegado o momento de atualizar os princípios teóricos do partido, através de uma revisão do legado de Marx e Engels. Incentivado por Kautsky, ele fez uma exposição geral de seus pontos de vista em Problemas do Socialismo (1896), que ele retomaria de maneira mais profunda na sua obra mais importante, Os Pressupostos do Socialismo (1899). Seguiu-se, então, um debate do qual participaram todas os grandes nomes do campo socialista na virada do século.



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A famosa obra de Bernstein pode ser lida como uma ampla contestação do partido comunista de 48 e de seu documento de fundação, o Manifesto

Os objetivos de Bernstein eram:


(a) confrontar as previsões de Marx com a situação atual do capitalismo, para corrigi-las ou abandoná-las

Era possível constatar empiricamente que, no final do século XIX, o desenvolvimento econômico não seguia a direção indicada por Marx. Nada de polarização das classes sociais; nada de crises cada vez mais graves; nada de concentração do capital; sobretudo, nada de crise catastrófica do capitalismo:

“Podemos designar os fatores de crise e os fatores de equilíbrio na economia moderna, mas é impossível estabelecer a priori qual será sua relação recíproca e sua evolução. Se acontecimentos exteriores imprevistos não causarem uma crise geral (o que, diga-se de passagem, pode acontecer todos os dias), não há nenhuma razão premente para pensar que uma crise propriamente econômica possa se produzir em época próxima. As depressões locais e parciais são inevitáveis, mas um bloqueio geral do sistema é impossível, dada a organização e a extensão atuais do mercado mundial, e especialmente o gigantesco desenvolvimento da produção de bens de consumo. Esse último fenômeno é determinante: nada talvez contribuiria tanto para atenuar as crises quanto a baixa dos rendimentos e dos preços dos bens de consumo.” 
(Bernstein, Les présupposés du socialisme, Seuil, 1972, p. 123)


(b) dissociar a construção do socialismo e a prática revolucionária

Uma vez que o cenário de uma catástrofe final do capitalismo parecia improvável, era desnecessário e indesejável o recurso à conquista violenta do poder e a instauração da ditadura do proletariado. Bernstein propunha explicitamente a adoção de uma prática reformista, com base no sufrágio universal e num programa de exigências mínimas alcançadas através de avanços graduais rumo a um socialismo democrático.

“A democracia é, ao mesmo tempo o meio e o fim. É um instrumento para instaurar o socialismo e a própria forma de sua realização”.
(idem, ibidem p. 174). 

Por isso, era preciso dissociar teoricamente a construção do socialismo e a estratégia revolucionária.

“Pode-se distinguir no movimento socialista moderno duas correntes principais que, segundo as épocas e sob formas diferentes, se opõem uma à outra. Uma se baseia nos projetos de reforma elaborados pelos teóricos do socialismo: é construtiva. A outra extrai sua inspiração das sublevações revolucionárias: é destrutiva. Conforme as circunstâncias, a primeira aparece como utópica, societária, pacifista, evolucionista, a segunda como conspiradora, demagógica, terrorista (...) A teoria marxista tenta uma síntese dessas duas correntes (...) mas tal amálgama não significa por isso que a contradição esteja ultrapassada: trata-se mais de um compromisso. A teoria marxista encontra aqui esse caráter de dualismo do qual jamais se desviará. É por isso que devemos procurar as razões pelas quais o marxismo nos aparece a intervalos muito curtos sob aspectos diferentes”.
(idem, ibidem p. 61)


(c) examinar as pretensões científicas da doutrina marxista para colocá-las em bases devidas, à luz do conceito de ciência do final do século XIX

Bernstein pretendia depurar a ciência social legada por Marx dos seus elementos utópicos e ideológicos espúrios. O primeiro capítulo  d'Os Pressupostos do Socialismo tem como epígrafe uma frase tirada do Anti-Dühring, de Engels: "Com essas descobertas o socialismo se tornou ciência. A próxima coisa era elaborar seus detalhes e relações”. Era essa ciência socialista, que Engels vinha defendendo desde a morte de Marx, que Bernstein contestava justamente em nome de novas exigências de cientificidade:

“Hoje a Social Democracia Alemã aceita como base teórica de sua atividade a doutrina social que Marx e Engels elaboraram e chamaram de socialismo científico. Isto quer dizer que, embora a Social Democracia, como partido militante, represente certos interesses e tendências, embora procure alcançar certos objetivos definidos por si mesma, ela determina, em última análise, esses objetivos de acordo com o conhecimento capaz de prova objetiva, isto é, conhecimento que se refere e se conforma apenas à experiência empírica e à lógica. Não sendo capaz de tal prova não é mais ciência, mas depende de impulso subjetivo, de mero desejo ou opinião.
(Bernstein, Preconditons of socialism, p. 9)

De maneira um tanto canhestra (Bernstein estava longe da perícia teórica de Kaustky), expunha-se aí um problema real que foi retomado em chave hegeliana pela Teoria Crítica de Frankfurt: a questão da relação entre ciência e ideologia; entre conhecimento e interesse; entre a (suposta) neutralidade axiológica da observação empírica objetiva e as tendências comprometidas subjetivamente com valores. Nas mãos de Bernstein, porém, essas oposições serviam apenas para construir a acusação trivial de que a doutrina de Marx não era uma verdadeira ciência, na acepção do positivismo bem-pensante fin-de-siècle, uma vez que estava comprometida com interesses e tendências. Mesmo assim ele reconhecia de bom grado que a doutrina tinha bases empíricas que lhe garantiam a primazia face a outras teorias socialistas, constituindo uma vantagem para o partido social-democrata:

"Desta forma, Bernstein simultaneamente contestara o caráter científico da doutrina socialista – na medida em que todas as projeções históricas conteriam um elemento hipotético – e exaltara a sua fundamentação empírica, característica que a distinguiria de outras doutrinas políticas. A ciência é livre de tendências; ao meramente reconhecer a facticidade da vida social, ela não pertence nem ao partido nem à classe. Ao contrário, o socialismo expressa tendências e como uma doutrina de um partido progressista não pode estar vinculado a simples fato. Mas porque o objetivo do socialismo está de acordo com o desenvolvimento social – como constantemente mostrado pela pesquisa científica relativa às forças motoras da sociedade moderna – é possível para a teoria socialista, mais do que para qualquer outra teoria política, ir ao encontro de demandas científicas. A social-democracia, o partido do socialismo, é então superior a qualquer outro partido político por ajustar seus objetivos e demandas à teoria e às exigências das ciências sociais.” 
(Joana El-Jaick Andrade, O Revisionismo de Eduard Bernstein e a negação da dialética, p. 188) 

O problema é que os elementos não-científicos do marxismo levavam à “desconsideração irracional pelas condições concretas”, que se traduzia em utopismo, blanquismo e romantismo revolucionário, tendências que desprezavam as pequenas conquistas negociadas com paciência, esperando que a vitória da revolução trouxesse a solução súbita de todos os problemas sociais e políticos. 


Esse parti-pris revolucionário prejudicaria até mesmo as investigações feitas por Marx. Alguns resultados d'O Capital estariam comprometidos com o programa ideológico que havia sido definido muito anos antes no Manifesto. 

"Em minha opinião o capítulo XXIV d'O Capital revela mais um dualismo que circula por toda a obra monumental de Marx (...) que consiste nisto: a obra pretende ser uma análise científica, apesar de tratar de uma tese já bem definida muito antes de a obra ser concebida; que esta se baseia em um esquema no qual o resultado a que devia conduzir o desenvolvimento já foi conseguido de maneira antecipada. O retorno ao Manifesto Comunista denota aqui um resíduo efetivo de utopismo no sistema de Marx."
(citado por Joana El-Jaick Andrade, O Revisionismo de Eduard Bernstein e a negação da dialética, p. 190)


(d) eliminar o hegelianismo da doutrina de Marx

Bernstein via a dialética hegeliana como um jogo sofístico em que tudo se transformava seu oposto. A derrota do proletariado poderia ser vista como vitória; o advento da burguesia criaria as condições para o seu fim etc. Nada mais que um método especulativo que conduzia a conclusões contrárias à observação empírica, donde os vários prognósticos falsos e as estimativas errôneas feitas por Marx e Engels. 

Mas havia algo pior na dialética: um gosto pela dissolução dos  conceitos, pela destruição e pela reversão de tudo o que está estabelecido, um método de pensamento que se afinava com a prática revolucionária. Uma escolástica da desordem, um terrorismo teórico-prático, um blanquismo especulativo. 


Esse hegelianismo contaminava a doutrina de Marx e era incompatível com a linha política do partido social-democrata.




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A revisão de Bernstein correspondia ao sincero intento de salvar todos os aspectos do marxismo tidos como relevantes a partir da elaboração final de Engels, mas essa revisão era feita à luz de princípios teóricos ecléticos totalmente estranhos à obra de Marx:

- a rejeição da contradição interna e de todo pensamento que procure acompanhar o movimento da contradição;


- a rígida separação entre o domínio dos fatos e o dos valores; 


-  a visão de ciência como registro dos fatos empíricos;


- o conceito liberal de vida política democrática parlamentar;


- a identificação entre desenvolvimento histórico e evolução darwiniana, por um lado, e entre evolução e mudança gradual, por outro.


Engels acreditava numa ciência socialista que formularia as leis do desenvolvimento histórico, leis que permitiriam vislumbrar o rumo do processo e seu objetivo final. Para haver revolução, era preciso que certas condições objetivas, reconhecidas pela ciência socialista, estivessem presentes. Uma revolução não deveria ser feita por uma questão de arbítrio. 

Bernstein levou a sério a exigência de cientificidade levantada por Engels, mas chegou à conclusão de que, se a ciência é entendida como observação neutra dos dados empíricos imediatos, ela não permite prever o futuro nem estabelecer objetivos finais. Ela apenas define as condições objetivas atuais e não sustenta qualquer hipótese sobre o futuro.  Neste caso, a ação política deve se voltar para as tarefas do presente. Engajar-se numa revolução é sempre fazer uma aposta no que virá; uma aposta é sempre expressão de uma tendência (portanto, de uma ideologia no sentido de Bernstein). Por isso, nenhum conhecimento objetivo e científico pode servir de base para uma ação revolucionária. Toda e qualquer revolução é apenas um ato de arbítrio.


Engels equiparou Marx a Darwin; Bernstein levou a sério a comparação, mas entendeu o desenvolvimento histórico como transformação gradual e contínua, oposta a qualquer salto revolucionário.


Engels saudava o materialismo histórico como chave do entendimento dos processos sociais e políticos. Bernstein aceitava as explicações materialistas  no campo da história e da análise social, assim como reconhecia que a primazia do SPD entre os partidos socialistas se devia à capacidade de diagnosticar de maneira mais precisa as forças sociais. Todavia, precisamente porque levava a sério a ciência materialista da sociedade e da história, Bernstein não aceitava que a ação política, que pertence ao domínio da liberdade e dos valores, fosse orientada por uma explicação que proveniente do domínio dos fatos e da determinação causal. O socialismo, como  ação política, precisa ser orientado por ideais éticos de Justiça e de Liberdade, que põem em movimento a vontade dos homens rumo a uma sociedade justa e democrática.


Por fim, se é verdade que Engels exaltou os êxitos eleitorais do Partido Social-Democrata Alemão como sinal de um avanço do movimento operário, Bernstein - levando Engels a sério -, passou a se concentrar no movimento por  si mesmo. Ocorre que o sujeito desse movimento se tornava cada vez mais o partido juntamente com os sindicatos. Com o fim das leis anti-socialistas e o crescimento parlamentar contínuo, o partido ganhou vida própria e se hipertrofiou. O proletariado passou a ser menos representado do que protegido pelo SPD e pelos sindicatos, que aos poucos se acomodavam a um papel paternalista. Os recém-surgidos apparatchiks  viam com simpatia a revisão proposta por Bernstein. Sem a perspectiva de revolução, nem um verdadeiro movimento das massas, restavam apenas as tarefas rotineiras, imediatas e práticas do partido e dos sindicatos. 

Quando Bernstein disse que o objetivo não era nada e o movimento era tudo, ele não estava expressando uma exigência banal de que o partido deveria se voltar para tarefas exequíveis. Ele queria dizer principalmente que o objetivo último tal como entendido pela tradição marxista - a liberação econômica do proletariado e pela conquista do poder político - não tinha conteúdo definido.” 
(Leszek Kolakowski, Main currents of marxism, vol II, p. 110)

É claro que Engels não era responsável por nada disso, mas é certo que ele forneceu a urdidura sobre a qual Bernstein teceu esta trama. 




3. O sudário de Laertes não ficará pronto tão cedo

"Pedir uma retribuição igual ou simplesmente justa, na base do sistema do salariado, é o mesmo que pedir liberdade na base do sistema da escravatura" 


Em 1898, pouco antes antes do lançamento d'Os Pressupostos do Socialismo, foi publicado em Londres um folheto de Marx  escrito a partir de um debate na Associação Internacional dos Trabalhadores em 1865. À maneira daqueles mortos que insistem em admoestar os vivos,  várias passagens do opúsculo de Marx insistiam nos limites da estratégia reformista.

"Pedir uma retribuição igual ou simplesmente justa, na base do sistema do salariado, é o mesmo que pedir liberdade na base do sistema da escravatura. O que pudésseis considerar justo ou equitativo não vem ao caso. O problema está em saber  o que vai acontecer necessária e inevitavelmente dentro de um dado sistema de produção."
    
"A classe operária não deve exagerar a seus próprios olhos o resultado final dessas lutas diárias, não deve esquecer-se de que luta contra os efeitos, mas não contra as causas desses efeitos; que logra conter o movimento descendente, mas não fazê-lo mudar de direção; que aplica paliativos, mas não cura a enfermidade. Não deve, portanto, deixar-se absorver exclusivamente por essas inevitáveis lutas de guerrilhas, provocadas continuamente pelos abusos incessantes do capital ou pelas flutuações de mercado. A classe operária deve saber que o sistema atual, mesmo com todas as misérias que lhe impõem, engendra simultaneamente as condições materiais e as formas sociais necessárias para uma reconstrução econômica da sociedade. Em vez do lema conservador de "Um salário justo para uma jornada de trabalho justa!", deverá inscrever em sua bandeira esta divisa revolucionária: "Abolição do sistema de trabalho assalariado!".
(Karl Marx, Salário, Preço e Lucro, Os Economistas, Abril Cultural, 1982 p. 161 e 184)



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Joana El-Jaick Andrade, O Revisionismo de Eduard Bernstein e a negação da dialética, dissertação de mestrado, USP, 2006  |  Valério Arcary, A Comuna de Paris e a teoria da revolução em Marx: Do balanço na "Guerra civil em França" às conclusões de Engels no "Testamento" de 1895  |  Gérard Bensussan & Georges Labica (org), Dictionnaire Critique du Marxisme, Quadrige/PUF, 1999 | Eduard Bernstein, The Preconditions of Socialism, Cambridge University Press, 1993  |  Eduard Bernstein, Les présupposés du socialisme, Seuil, 1972  |  François Châtelet, Olivier Duhamel, Evelyne Pisier (org), Dicionário de obras políticas, Civilização Brasileira, 1993  |  Encyclopaedia Britannica | Friedrich Engels, Introdução a Luta de Classes em França de 1848 a 1858  | Leszek Kolakowski, Main currents of marxism, volume II, Clarendon Press, Oxford, 1978 | Karl Marx, Salário, Preço e Lucro, coleção Os Economistas, Abril Cultural, 1982







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