sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A claraboia e o holofote #28 (IV)







Uma leitura do Manifesto do Partido Comunista




Lenin 

4.  Para ler Lenin




Diante da mole de escritos de Lenin, é preciso afastar desde logo o julgamento errôneo e pertinaz que faz dele um teórico, ou algo mais do que um teórico: o pensador genial que chegou à conciliação entre teoria revolucionária e prática revolucionária. 

É verdade que Lenin tinha preocupações teóricas e chegou mesmo a afirmar que “sem teoria revolucionária não pode haver também movimento revolucionário!” (Que fazer?, Obras Escolhidas, tomo I, p. 96). Isso, porém, não significa que Lenin estivesse comprometido com a produção de alguma teoria, ou, em outras palavras, com o exercício de elaborar, inventar ou transformar conceitos e modelos de acordo com inferências logicamente válidas e racionalmente justificáveis. Mesmo um simples golpe de vista sobre o índice das obras de Lenin é suficientemente para mostrar que elas não se enquadram nas formas recorrentes pelas quais se expõem teorias: elas não são dissertações, nem tratados, nem ensaios, nem série de apontamentos. Ele se punha antes como um intérprete que, na leitura dos numerosos autores do campo socialistas, ressaltava os elementos condizentes com a prática revolucionária e combatia as interpretações não-revolucionárias como “desvios” em relação a um objetivo final estabelecido por uma teoria fundante que se encontraria nas obras de Marx e Engels. Para Lenin, portanto, a teoria já estava dada, mas exigia uma leitura correta.

Assim, os escritos de Lenin não tinham como objetivo a pesquisa e investigação, mas a intervenção política direta. Esse primado da prática política tem efeitos textuais visíveis nas obras de Lenin, seja no predomínio das modalidades erísticas (a polêmica, a refutação, o vitupério), deliberativas (a apresentação de propostas práticas) e exortativas (a conclamação à ação); seja no caráter necessariamente instrumental, local e datado de cada intervenção discursiva.  Cada escrito de Lenin parte de uma situação à qual procura dar uma resposta política. Cada obra é o exemplo de uma análise concreta de uma situação concreta, segundo o conhecido preceito metodológico de Lenin. Ocorre que este preceito admirável constitui a antítese mesma de uma investigação teórica, ou seja, Lenin se coloca nos antípodas daqueles que se esforçam por alcançar uma síntese que explique, de maneira abstrata, geral, um campo de situações possíveis. Mesmo nos momentos em que ele mais se aproxima do trabalho teórico de largo fôlego o aspecto de intervenção e combate nunca se perde. O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia (1899) é um ajuste de contas com as teses narodniks e uma defesa do ponto de vista marxista ortodoxo (o de Marx, Kautsky e Plekhanov); Que fazer? (1902) é uma extensa e minuciosa refutação de várias posições revisionistas que descuravam dos aspectos teóricos e organizacionais da ação político; Imperialismo: fase superior do capitalismo (1916) se apresenta como um ensaio popular contra as correntes socialistas chauvinistas ou pacifistas que não compreendiam o que estava em jogo na Guerra de 1914 e as oportunidades que esse conflito abria para uma revolução proletária; O Estado e a Revolução (1917) é uma grande colagem de citações de Marx e Engels para provar o quanto Kautsky e a Segunda Internacional haviam se afastado do marxismo.

Se o próprio Lenin se apresentava apenas como um intérprete fiel de uma teoria fundante, que lhe fornecia os argumentos de autoridades para desbancar aqueles que se desviavam; se os escritos de Lenin se afastavam das formas tradicionais de exposição teórica; se sua prática intelectual consistia em análises pontuais e concretas, haveria alguma razão para se falar numa teoria “leninista”?  Não, se por isso entendermos um núcleo articulado de conceitos ou modelos explicativos; sim, se reconhecermos a constância e a imbricação de certas preocupações na obra de Lenin: a organização partidária, as tarefas revolucionárias, a luta contra o oportunismo nos meios socialistas.

Nesse sentido mais alargado, aquilo que se pode chamar de “leninismo” responderia a três demandas: (1) fazer uma leitura correta de Marx e Engels, ou seja, proporcionar uma interpretação que dê ênfase aos objetivos revolucionários da classe operária e que forneça os instrumentos conceptuais para as análises concretas; (2) examinar, a cada momento, a configuração da luta de classes do ponto de vista social, político e econômico, tanto no plano nacional quanto no internacional, para identificar e aproveitar possibilidades de ação revolucionária; (3) manter aberta a possibilidade de compromissos e composições políticas de curto prazo, mesmo que fosse preciso fazer concessões aos adversários.

Em suma, o leninismo ensina que a prática política de esquerda nunca pode perder de vista o objetivo final (a tomada de poder pelo proletariado e a construção do comunismo), mas deve estar atenta aos sinais do presente, às possibilidade indicadas pela análise das situações concretas, possibilidades que devem ser exploradas de maneira flexível e adaptativa. A política leninista era uma realpolitik revolucionária que Lenin opunha aos “oportunistas”, isto é, aos social-democratas que negavam os objetivos finais da luta de classes, a exemplo de Bernstein: “Eu afirmei que o movimento era tudo para mim e que aquilo que normalmente é chamado o objetivo final do socialismo era nada, e nesse sentido eu ainda endosso isso hoje.” (The Preconditions of Socialism, p. 5). Aqueles que assim pensavam, acreditavam que era possível melhorar gradualmente a condição da classe trabalhadora a partir de ganhos imediatos negociados pelos sindicatos e pelos representantes social-democratas no parlamento. Todavia, como Bernstein bem o sabia, esse compromisso com  os interesses imediatos dos trabalhadores só poderia ser mantido com o sacrifício da teoria marxista, que é, essencialmente, uma teoria da luta de classes, do papel revolucionário do proletariado e da destruição do Estado burguês.

O gradualismo bernsteiniano, ao defender a evolução ao invés da revolução, supunha uma situação de estabilidade politica, crescimento econômico contínuo e colaboração entre a classe trabalhadora e a burguesia nos quadros das instituições liberais e normas constitucionais do Estado. Essas suposições eram demasiado otimistas. Forças novas já estavam em movimento, como já percebia J.A. Hobson que preparava, então, O Imperialismo: um estudo,  a ser publicado em 1902.

Todavia, o oportunismo, com sua visão curta, não era apanágio dos revisionistas, que ao menos tinham o mérito de admitir publicamente sua ruptura com a teoria marxista clássica. A chamada ortodoxia do SPD, tendo Kautsky à frente, embora repreendesse as posições assumidas por Bernstein, reafirmando no plano doutrinal a luta de classes e o caráter revolucionário do proletariado, era complacente com as práticas oportunistas do  partido. Cada vez mais concentrado na administração das tarefas cotidianas e das causas miúdas da vida política e sindical, o SPD perdia sua combatividade e se burocratizava. Pouco a pouco, seus membros eram cooptados pela burguesia e pelo Estado, aderindo a posições chauvinistas. Vários deles acabariam por se tornar “traidores” da causa socialista, como Lenin não se cansaria de lembrar. O contraste entre a politica da social-democracia alemã e a de Lenin foi assim resumido por Lukács:

“A realpolitik da social-democracia, que sempre tratou todos os problemas imediatos do cotidiano como simples problemas cotidianos, desvinculados do caminho do desenvolvimento total, sem relação com os problemas últimos da luta de classes e, portanto, sem jamais apontar de modo real e concreto para além do horizonte da sociedade burguesa, voltou a conferir ao socialismo, aos olhos dos operários, um caráter utópico. A separação entre o objetivo final e o movimento falsifica não apenas a correta perspectiva em relação às questões do cotidiano, do movimento, mas transforma ao mesmo tempo o objetivo final numa utopia. (...)

De modo que, quando se busca seu contexto e sua fundamentação, a realpolitik de Lenin mostra-se como o ponto mais alto atingido pelo materialismo dialético: de um lado, uma análise rigorosamente marxista, simples e sóbria, mas extremamente concreta das condições dadas, da estrutura econômica e das relações de classe; de outro, uma visão clara – não deformada por nenhum tipo de preconceito teórico e desejo utopista – de todas as tendências que resultam dessas condições.”
(György Lukács, Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, pp 87; 89)

Um dos problemas da descrição demasiado respeitosa e demasiado filosofante de Lukács é que ela oblitera o caráter ousado, arriscado, aventureiro, “blanquista” da política de Lenin, capaz de desconcertar seus camaradas mais chegados. O choque causado pelas Teses de Abril não foi um caso isolado. É que a prática política de Lenin não era consequência de uma dedução rigorosa que partisse dos princípios da teoria marxista, descendo à análise concreta e chegando à ação política pontual. As coisas se passavam de maneira mais confusa e, muitas vezes, os alegados princípios teóricos nada tinham a ver com a prática que deveria resultar deles, o que pode ser comprovado por um mero cotejo entre O Estado e a Revolução e todas as resoluções que Lenin tomou a partir de outubro/novembro de 1917.

Não há traquejo dialético que possa legitimar, a partir de premissas marxistas, a criação da Cheka, a primeira polícia secreta soviética. “Estabelecida em dezembro de 1917, ela recebeu status extra-judicial por ordem de Lenin. A onipotente Cheka tinha o poder de prender, investigar, dar sentenças e cumpri-las. Dezenas de milhares foram fuzilados sem um julgamento nos porões da Cheka. Como se não fosse o bastante, em 14 de maio de 1921, o Politburo, presidido por Lenin, aprovou uma moção ‘ampliando os direitos da Cheka em relação ao uso da pena de morte’.” (Dmitri Volgonov, Lenin: a new biography, p. 238).

Lukács escreveu que “o realismo de Lenin, sua realpolitik, é a liquidação decisiva de todo e qualquer utopismo, a realização concreta do conteúdo do programa de Marx, uma teoria que se tornou prática, uma teoria da práxis.” (Lenin: um estudo sobre a unidade de seu pensamento, p. 89). Há uma verdade irônica, involuntária e dialeticamente perversa na afirmação de que Lenin liquidou todo e qualquer utopismo.



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Ein Marxist hat nicht das Recht, Pessimist zu sein



Ernst Bloch



Из искры возгорится пламя







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